Raquel Carpenedo

Um visitante misterioso

Era uma tarde fria quando ele chegou a Cidade dos Encantos. Dizer que era uma tarde fria sem descrevê-la parece com todas as outras tardes de inverno. Aquela não. Era uma tarde cinzenta com cara de poucos amigos. O vento cortava fundo quem se atrevesse a sair às ruas e podia-se sentir uma garoa fininha que bailava ao sabor do vento.  Se alguém corajoso se atrevesse a sair, sabia que  o quanto agasalhado deveria ir.

Ele vestia apenas uma camisa um tanto desbotada sob um colete de lã, sapatos bastante gastos pelo uso contínuo, como tudo indicava. Seu rosto jovem ficava um pouco escondido pelos longos cabelos e um início de barba moldava os contornos do seu rosto. Logo via-se que não era morador de cidades vizinhas, caso contrário estaria bem agasalhado por conhecer o clima daquele lugar.

Chegou silencioso e sentou-se no banco em frente a padaria do senhor Adonias. Ali permaneceu por horas a fio, sem um movimento sequer. As pessoas que entravam, com o propósito de comprar pão ou algo do qual necessitavam, nem se quer dirigiam-lhe o olhar. Não sei se em algum momento houve distração de minha parte, devido a um nevoeiro rápido que se formou, mas não o vi sair. Ele havia sumido, diante do meu olhar atento. Abri a janela, olhei para todos os lados, nem um sinal.  Talvez tivesse entrado na padaria, sabe-se lá. Fechei a janela e retomei meus afazeres. Tinha um trabalho a terminar e não podia mais distrair-me com nada.

A noite chegou, o dia amanheceu e ao sair para a escola, encontrei o visitante misterioso andando calmamente pela rua observando tudo e todos. Os dias passavam e soube que ninguém conseguia saber de onde vinha, nem seu nome, tão pouco sobrenome.  Era silencioso, falava pouco, mas suas palavras faziam as pessoas pensar. Estava sempre sorridente e tudo que lhe pediam ele fazia com vontade, e capricho. A essas alturas ele já havia conquistado a simpatia dos moradores, que até lhe deram um nome ou seja, acharam um meio de chamá-lo já que ele não falava nada sobre sua pessoa. Amigo, essa era amaneira carinhosa que o povo daquele lugarejo se dirigia a ele.

O povo ali era tranquilo, mas às vezes um desentendimento surgia e nem sempre era fácil acomodar ambas as partes desentendidas. Mas com a presença de Amigo, era diferente.  Em meio ao bate-boca acalorado, ele chegava com tranquilidade e resolvia com poucas palavras. Em casos de doença também era interessante, pois ele conhecia plantas capazes de reduzir o quadro sintomático de maneira assustadora. E não era só as plantas, ele tinha na boca, palavras que traziam segurança ao doente, ao inconformado, ao ansioso, até mesmo àquelas pessoas que não acreditavam que o bem pudesse existir e estavam sempre à espreita de que algo ruim aconteceria consigo, com a família ou com a cidade.

Certo dia, resolvi segui-lo, pois ninguém sabia onde realmente Amigo morava se tinha família, um trabalho…

Procurei manter-me silenciosa e também manter uma distância que não permitiria a ele sentir que estava sendo seguido. Tomamos o rumo da estrada que trazia os visitantes a Cidade dos Encantos. Era a única entrada e saída da cidade. Atenta, mas disfarçando entre colher uma flor e outra pelo caminho, eu seguia-o cuidadosamente. Não era à toa que a cidade tinha esse nome, pois ela era realmente um encanto. O riacho que cortava o bosque, as flores, tudo tinha a mão de Deus e o cuidado carinhoso das pessoas que ali viviam. Já havíamos andado um bom trecho e como por encanto um nevoeiro surgiu envolvendo a nós dois cada um em sua distância e quando se desfez, Amigo havia sumido. Estranho todas as vezes que aproximava-se o final do dia esse nevoeiro surgia e sumia com mesma rapidez com que chegara. Tentei seguir Amigo mais três vezes, sem sucesso. Uma tarde sentada sob as árvores lendo, a primavera já se anunciava, Amigo achegou-se para conversar. Ele havia percebido as minhas tentativas de descobrir quem ele era.  Em meio a conversa, disse-me uma frase que encerrou minha vontade de bancar a detetive:

– As coisas são como devem ser. Há pessoas que surgem por algum motivo, permanecem o tempo que é necessário e depois vão em busca de outras situações. Elas têm  um porquê para existirem. A isso dá-se o nome de “missão”. Nem todos conseguem entender ou ver a sua missão no mundo. Para isso é necessário ter um coração aberto aos sinais que surgem quando menos se espera.

Fiquei atenta às suas palavras. Percebi que enquanto falava, seus olhos azuis como o céu de primavera, pareciam emitir uma luz e suas palavras eram suaves e acolhedoras.  Parecia que ali reinava a paz.

Mais alguns dias se passaram após a nossa conversa, e então, naquela manhã em que marcava o início a primavera, Amigo não apareceu. Dois dias se passaram, uma semana, um mês e nada. Todos se perguntavam o que teria acontecido. Ele já era parte daquela cidade. Contei então à minha família a conversa que tivemos e as palavras ditas por ele. Minha mãe e minha avó com certeza iriam repassá-la às amigas na primeira oportunidade e meu pai idem.

Amigo não estava mais entre nós, mas suas palavras, atitudes eram lembradas e seguidas a todo instante, por todos os moradores, e por incrível que pudesse parecer, cada novo morador que ali chegasse, ouvia a história e seguia as mesmas leis, se é que assim se pode dizer.

Uma noite, assistindo a televisão, uma notícia chamou a atenção de todos em casa. Um homem misterioso havia aparecido em uma cidadezinha do outro lado do mundo, onde a guerra, os desentendimentos, o ódio permeavam os dias daqueles moradores. Tentava convencer a todos de que a paz , o amor, a compreensão eram a solução para todos os males. Devido às suas palavras virou assunto da mídia. Era um louco, perdido por aí. Houve até alguém que conseguiu tirar uma rápida fotografia do estranho ser. Nos olhamos com um ponto de interrogação nos olhos. Era ele, Amigo, sem sombra de dúvidas. Os cabelos estavam curtos, sem barba, melhor vestido, mas aqueles olhos,  de um azul intenso, traziam a mesma luz que lamentavelmente, não estava sendo percebida por algumas pessoas.

Só aí percebi e entendi suas palavras. Quantos lugares, quantos corações, quanto tempo para fazê-los entender a “missão”.

Texto escrito por: Raquel Carpenedo

Nenhum comentário

Deixe o seu comentário!

Sobre Raquel Carpenedo!

Sou Raquel Carpenedo. Nasci em Santa Rosa, Rio Grande do Sul em 1966. Graduada em Letras , com pós-graduação em Leitura e Redação e pós-graduação em Educação Especial. Fui professora de escola particular por 25 anos. Atualmente, sou professora das séries finais do Ensino Fundamental da Rede Pública Municipal.

Sobre Raquel!